Decreto nº 10.278/2020. Posso eliminar os documentos originais?

Em 20 de setembro de 2019 era sancionada a Lei nº 13.874, que institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, com o objetivo de reduzir burocracias e flexibilizar formalidades na execução das atividades econômicas, em prol das garantias de livre mercado. Dentre as alterações legislativas provocadas pela “Lei da Liberdade Econômica”, alguns dispositivos legais causaram mudanças significativas no tocante ao valor legal e probatório de documentos digitalizados, e ainda, na possibilidade de eliminação dos registros originais em suporte físico.

O art. 3º da Lei apresenta os direitos essenciais das pessoas (naturais ou jurídicas) para o desenvolvimento e crescimento econômico do País, entre eles:

X – arquivar qualquer documento por meio de microfilme ou por meio digital, conforme técnica e requisitos estabelecidos em regulamento, hipótese em que se equiparará a documento físico para todos os efeitos legais e para a comprovação de qualquer ato de direito público; (grifo nosso)

Ainda sobre o inciso acima, em seu art. 18 a Lei registra que a eficácia do direito “fica condicionada à regulamentação em ato do Poder Executivo federal”. Contudo, são apresentadas duas exceções: (1) para documentos privados, nos quais o meio de comprovação de integridade e confidencialidade (quando necessário) será definido em comum acordo entre as partes; e (2) caso o processo de digitalização faça uso de certificação no padrão da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), no qual a integralidade, autenticidade e confidencialidade serão garantidas, independente de aceitação entre as partes.

Para além deste item, novas redações foram incluídas à Lei nº 12.682/2012, que dispõe da elaboração e arquivamento de documentos em meios eletromagnéticos, passando a vigorar como:

Art. 2º-A. Fica autorizado o armazenamento, em meio eletrônico, óptico ou equivalente, de documentos públicos ou privados, compostos por dados ou por imagens, observado o disposto nesta Lei, nas legislações específicas e no regulamento.

§ 1º Após a digitalização, constatada a integridade do documento digital nos termos estabelecidos no regulamento, o original poderá ser destruído, ressalvados os documentos de valor histórico, cuja preservação observará o disposto na legislação específica.

§ 2º O documento digital e a sua reprodução, em qualquer meio, realizada de acordo com o disposto nesta Lei e na legislação específica, terão o mesmo valor probatório do documento original, para todos os fins de direito, inclusive para atender ao poder fiscalizatório do Estado. (grifo nosso)

Conforme explicitado, ainda que a Lei nº 13.874/2019 determine a equiparação do valor de prova de documentos digitalizados e seus respectivos originais, existe a condição de que estes cumpram exigências técnicas para garantia da integridade e autenticidade. Para regulamentar o disposto na Lei, em 18 de março de 2020 foi publicado o Decreto nº 10.278, para o estabelecimento da técnica e dos requisitos para a digitalização de documentos públicos ou privados, para que estes obtenham os mesmos efeitos legais dos documentos originais.  

A seção inicial do Decreto apresenta o âmbito de aplicação do regulamento, que pode ser empregado aos documentos físicos digitalizados por pessoas naturais, pessoas jurídicas de direito privado e pessoas jurídicas de direito público interno para comprovação de integridade. Para melhor compreensão, segundo o art. 41 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), pessoas jurídicas de direito público interno correspondem à União, os Estados, o Distrito Federal e Territórios, os Municípios, as autarquias (inclusive as associações públicas), e as demais entidades de caráter público criadas por lei.

Em seguida são exibidos os itens aos quais o Decreto não se aplica, sendo eles: documentos nato-digitais – aqueles produzidos originalmente em formato digital, assim como documentos em microfilmes, audiovisuais, documentos de identificação e de porte obrigatório. Ou seja, o Decreto tem como objeto de regulamentação apenas os documentos físicos que foram migrados para o meio digital através da digitalização.

Para assegurar que os documentos digitalizados obtenham o mesmo valor probatório dos documentos originais, a digitalização deve utilizar de procedimentos e tecnologias que garantam a integridade, confiabilidade e confidencialidade (quando aplicável) dos itens digitalizados. Uma das formas mais adotadas é a utilização de certificado digital emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil. Tratando-se de documentos que envolvam entidade públicas, conforme art. 5º do Decreto, a assinatura digital com certificado ICP-Brasil será requisito obrigatório para a autenticação do autor da digitalização, como também da integridade dos documentos e seus respectivos metadados.

Para a comprovação de integridade de documentos entre particulares, o Decreto aponta o mesmo teor do inciso I do art. 18 da “Lei da Liberdade Econômica”, que uma vez acordado entre as partes, qualquer meio de comprovação pode ser utilizado. Porém, para os casos em que não houve acordo prévio, será aplicado a mesma metodologia dos objetos digitalizados para entidades públicas.

Sobre a rastreabilidade e auditabilidade, os sistemas e aparelhos utilizados na digitalização devem dispor de mecanismos de registro e recuperação dos procedimentos realizados com os documentos, e ainda, manter o histórico destas ações. Isto posto, para a manutenção da segurança contra fraudes e adulterações indevidas, as trilhas de auditoria são recursos obrigatórios para o registro de informações como: autor da digitalização, local e data do procedimento, dados do equipamento etc.

O Decreto determina também, para documentos envolvendo entidades públicas, o emprego de padrões técnicos de digitalização para assegurar a qualidade e legibilidade da imagem, permitindo assim o uso integral do documento digitalizado. Os critérios são definidos de acordo com as características dos documentos (se são textos impressos, textos manuscritos, fotografias, plantas e mapas etc.), com o estabelecimento da resolução mínima em dpi (pontos por polegada), cor (monocromático, escala de cinza, colorido etc.) e o formato de saída, sendo PDF/A e/ou PNG.

Os recursos tecnológicos utilizados na digitalização devem garantir também a interoperabilidade dos sistemas informatizados, com a produção de documentos digitalizados em formatos que proporcionem o acesso em qualquer sistema. Um dos formatos indicados nos padrões técnicos mínimos é o PDF/A, o qual sustenta o acesso aos documentos por prazos longos, uma vez que carrega as características e informações necessárias de forma integral, totalmente independente de fontes externas. Ou seja, o documento digitalizado em PDF/A carrega em si, de forma obrigatória, todos os caracteres textuais, imagens, fontes utilizadas, vetores e qualquer outra informação.

Ainda sobre os documentos digitalizados para entidades públicas, a inserção de metadados deve seguir um padrão com oito itens, sendo eles:  assunto, autor, data e local de digitalização, identificador do documento digital, responsável pela digitalização, título, tipo documental e hash da imagem (algoritmo para verificação de integridade). Quando estes documentos são digitalizados por pessoas jurídicas de direito público interno, existem metadados adicionais que estão vinculados à gestão arquivística destes documentos (classe, data de produção do documento original, destinação final prevista, gênero documental e prazo de guarda).

Desde que os procedimentos tenham sido executados conforme os critérios apresentados, em seu art. 9º o Decreto autoriza o descarte dos documentos físicos (originais) após a digitalização, com exceção daqueles que apresentarem valor histórico. Entretanto, neste quesito o Decreto entra em conflito com o disposto na Lei nº 12.682/2012, a qual o art. 2º-A é regulamentado pelo próprio Decreto. No art. 6º da Lei é indicado que os registros públicos originais, portanto em suporte físico, mesmo que digitalizados devem ser preservados conforme os dispositivos legais pertinentes.

Levando em consideração a hierarquia dos atos normativos, o disposto no Decreto não se sobrepõe à Lei, uma vez que recebe dela o seu fundamento de validade. Desta maneira, no âmbito da Administração Pública federal, o descarte de documentos originais (suporte físico) ainda não pode ser realizado, tendo como justificativa apenas a digitalização conforme os requisitos técnicos do Decreto nº 10.278/2020. É necessário seguir todo o rol de procedimentos estipulados pela legislação pertinente, como a Lei nº 8.159/1991, que dispõe sobre a Política Nacional de Arquivos Públicos e Privados:

Art. 9º – A eliminação de documentos produzidos por instituições públicas e de caráter público será realizada mediante autorização da instituição arquivística pública, na sua específica esfera de competência.

Em complementação ao disposto na “Lei de Arquivos”, temos o Decreto nº 10.148/2019, o qual institui o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), a Comissão de Coordenação do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos da administração pública federal (SIGA) e as Comissões Permanentes de Avaliação de Documentos (CPAD):

Art. 10.  A autorização para a eliminação de documentos de que trata o art. 9º da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, ocorrerá por meio da aprovação das tabelas de temporalidade e destinação de documentos do órgão ou da entidade pelo Arquivo Nacional (…).

Desta maneira, para que as pessoas jurídicas de direito público interno realizem a eliminação de documentos, devem ter uma tabela de temporalidade e destinação de documentos aprovada pelos órgãos competentes. A Tabela é um instrumento de gestão arquivística resultante do processo de avaliação documental, no qual os documentos são analisados enquanto fonte de valor informacional, com a definição de prazos de guarda e destinação destes registros, garantindo assim o acesso a informação enquanto esta seja necessária.

Para além destas exigências legais, as pessoas jurídicas de direito público interno da esfera federal deverão seguir o disposto na Resolução nº 40/2014 do Conselho Nacional de Arquivos – Conarq, que dispõe dos procedimentos para a eliminação de documentos no âmbito dos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Arquivos – SINAR. Portanto, os documentos originais (em suporte físico) deverão ser preservados até a conclusão dos prazos de prescrição ou decadência dos direitos a que se referem.

Entretanto, para os documentos físicos digitalizados e produzidos por pessoas naturais e pessoas jurídicas de direito privado, a eliminação é facultativa (com exceção daqueles que possuem valor histórico) desde que a digitalização cumpra os critérios técnicos do Decreto. Todavia, os documentos digitalizados deverão ser preservados por tempo equivalente aos originais (em suporte físico), ou seja, pelos prazos necessários para cumprimento de exigências legais, fiscais e/ou administrativas.

Sobre a manutenção dos documentos digitalizados, o Decreto ressalta que o armazenamento deve garantir a proteção contra adulterações, destruições e, quando necessário, contra o acesso e reprodução não autorizados. E ainda, que a indexação dos metadados possibilitem a localização e gerenciamento dos documentos digitalizados, bem como a conferência do processo de digitalização adotado.

É importante frisar que a digitalização não é, por si só, a solução para redução de custos com a produção e armazenamento de documentos. Sendo assim, como identificar os potenciais valores dos documentos? E seus respectivos prazos de guarda? E ainda, como identificar quais documentos possuem conteúdo histórico? Sendo que estes últimos não devem ser eliminados após a digitalização.

O primeiro passo é o desenvolvimento e implantação de um Programa de Gestão Documental (PGD) na instituição, com a elaboração de instrumentos de gestão do acervo, padronização e remodelagem de processos internos, implementação de tecnologias para gerenciamento, controle e armazenamento seguro dos documentos digitais e digitalizados, entre outras ações correlatas. 

A avaliação dos conjuntos documentais como etapa anterior à digitalização é essencial para a redução de custos do processo, pois a análise identificará os registros que cumpriram seus prazos de guarda e estejam passíveis de eliminação, ou melhor, que não tenham mais valor informacional. O exame do acervo é indispensável, pois nem todos os documentos possuem necessidade real de digitalização.

Dentre os resultados esperados, a racionalização de custos com a gestão e manutenção dos documentos é evidente, pois através da gestão arquivística do acervo, a digitalização proporcionará benefícios ainda maiores aos seus produtores. A SOS Docs possui equipe especializada e com vasta experiência na identificação de necessidades, análise e formalização de soluções customizadas para instituições privadas e públicas em todas as fases da implantação de soluções de Gestão Documental. Podemos auxiliá-lo na transformação digital da sua organização, com qualidade e eficiência, pergunte-nos como!

Breve resumo de sua história e currículo:

Alef Batista é arquivista formado pela Universidade de Brasília (UnB), com três anos de experiência em consultoria arquivística, processamento técnico de acervos, capacitação corporativa em gestão da informação e criação de produtos em memória institucional. Faz parte do time de arquivistas da SOS Docs há pouco mais de um ano, onde atualmente ocupa o cargo de Coordenador de Projetos, com atuação em produtos e serviços técnicos para nossos clientes da administração pública e do mercado privado.


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